A primeira vez no estádio


Gilmar Caldas Peres

Daria para fritar ovo no asfalto quando entrei num estádio de futebol pela primeira vez. Não era qualquer um, era o Olímpico Monumental, velho e saudoso casarão da Azenha. Tradicionalmente, domingo era dia de churrasco de costela, embaixo do arvoredo. Naquela época, ainda não era comum ter churrasqueira em casa. Era fogo de chão, com tijolos de seis furos improvisando uma churrasqueira, quando muito a grelha feita com ferro de construção por alguém criativo. No mais, eram espetos, do mesmo material, ou até mesmo de varas verdes. Os últimos, só os vi uma vez.

Os homens começaram os trabalhos com uma caipirinha feita de cachaça, limão e muito açúcar. Depois, encerraram com duas garrafas de cerveja faixa azul. A mãe não bebia. As três crianças dividiam uma Pepsi-cola de um litro, deliciando-se o quanto podiam. Era um néctar, algo extraordinário. Um litro por semana para as três, nada mais. Quanta diferença para os dias de hoje.

Talvez sob o efeito da caipirinha, meus pai e tio resolveram ir ao jogo da tarde. Grêmio versus São Paulo Prometia ser um grande enfrentamento. O tricolor gaúcho estava às vésperas de conquistar o mundo, ainda não sabíamos disso. Os paulistas tinham um timaço. Assim como acontece com as melhores coisas da vida, não pensaram muito. Decidiram ir ao jogo, dessa vez, eles me levariam junto. Meu peito parecia explodir de tanta excitação. Imaginem: tinha oito anos naquela época, não havia toda a informação e multimídia de agora. Era vinte e quatro de fevereiro de mil novecentos e oitenta. Boa parte da tecnologia atual só existia em filmes de ficção científica ou sonhos delirantes. Rapidamente, minha mãe me mandou trocar de roupa. “Será que eles não beberam demais para te levar no jogo?”. Sofria ela em voz alta, sempre preocupada comigo, às vezes até demais.

Pegamos um ônibus de Viamão até a Av. João Pessoa e de lá, a pé. Meu coração batia feito a banda do colégio no sete de setembro. Poderia saltar do peito a qualquer momento. Como será o estádio? Como se torce? E se sair gol? Dúvidas e expectativas que tomavam conta da minha cabeça, agarrado à mão de meu pai no meio de centenas de gremistas em ritmo de procissão até o santuário do imortal, quando meu tio falou:

- largue a mão dele. Aqui só têm gremistas. Não tem perigo.

- Mano, não sai de perto de mim. Agora é contigo. – consentiu meu pai com expressão séria.

Eu me senti adulto, orgulhoso pela confiança, mas assustado com a responsabilidade. E se me perco nessa multidão de azul, preto e branco? Deu tudo certo. Finalmente chegamos perto e me lembro de quando vi a obra do velho Hélio Dourado e outros gremistas também imortais apontando no entroncamento da Avenida da Azenha com a Dr. Carlos Barbosa pela primeira vez. Era real, estávamos quase lá. Não era invenção dos adultos nem um sonho de criança. Eu veria um jogo profissional ao vivo. Será que os jogadores profissionais correriam na velocidade do narrador do rádio? Em jogos amadores, como no campo do Monte Alegre, perto da minha casa, não. Conseguimos nos acomodar bem na arquibancada inferior. À sombra, graças a Deus. O calor era escaldante, e descobri que em dias muito quentes do verão gaúcho, é bem provável um temporal no final da tarde.

O que mais me marcou e também aos meus companheiros de aventura foi após meu pai, confiante na minha educação por ser muito bem recomendado pela mãe e criado com duas irmãs mais velhas e recatadas, dizer-me:

- Mano, aqui é coisa de homem. Pode xingar e falar palavrão à vontade. Depois, não. Tá bem? Principalmente na frente de mulheres.

Não lembro se respondi ou se apenas assenti com alguma expressão. Então, comecei a testar:

Lembro-me de um casal, fato raro em jogo de futebol naqueles tempos, virar-se para trás com feições assustadas, enquanto meu tio gargalhava e meu pai me dizia para não exagerar. Afinal, o jogo nem tinha começado ainda. Talvez jamais esqueça a cena. Na verdade, eu nem sei se tinha um repertório tão grande ou se foi a veemência e a intensidade dos xingamentos que horrorizaram a arquibancada.

O jogo foi morno. Guerreado e com cuidados defensivos de ambos os lados. O resultado, como nem tudo poderia ser perfeito, foi um empate em zero a zero. Não pude sentir a vibração de um gol. Porém, muitas outras eu vivenciei, inclusive um pobre velhinho tomando um banho de urina por estar em pé durante o ataque adversário. Coitado.

Ao chegarmos em casa, minha mãe se apavorou porque eu estava encharcado. “Ele tem bronquite”, reclamava. Foi um momento tão marcante que a tosse não se atreveu a aparecer. Eu estava preparado para homenageá-la com uma lista de insultos amplificada.

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Gilmar Peres

E-mail: pcgpop@hotmail.com

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