Plataforma


Gilmar Caldas Peres

A areia fina e úmida travava a corrida de vida ou morte. Respiração ofegante, pulso acelerado e náuseas de fadiga, horror e medo. Não lhe ocorria outro lugar para a fuga. Por sorte, não procurariam ali. Talvez desistissem pela garoa fina, vento nordeste assobiando uma canção sombria e um mar ressacado. O clima piorava e uma onda o pegou em cheio, derrubando-o no chão, gelando o corpo inteiro e deixando o gosto salgado na boca. O repuxo quase o engoliu, então precisou se afastar, ficando mais visível, embora a penumbra.

Era uma noite de inverno que oferecia pouca coisa aos moradores além de se trancarem em casa, fugindo daquela intempérie. No máximo, assistir algum programa de televisão. Os meses de julho e agosto podem ser cruéis às praias do Sul. A maneira impiedosa como castiga aquela imensidão de areia e uma costa sem fim deixa claro quem manda, impondo-se pela força.

“Sim. Eu errei. Mas não é para tanto. Por que tanto ódio?” pensava consigo mesmo quando ouviu ao longe as palavras agressivas trazidas pelo vento “Lá está ele. Vamos pegá-lo. Vamos pegá-lo”. Acelerou, chutando areia úmida contra o vento que o segurava. Só havia uma possível guarida, um único local onde poderia escapar, visto o cerco implacável, segurando barras de ferro, facões, um bastão com pregos na ponta e até um calibre trinta e dois. A plataforma de pesca aparecia em meio à escuridão. Percebeu a disputa entre o vento e o mar para ver quem a arrancaria primeiro do lugar. A espuma se chocando contra a estrutura contrastava à escuridão profunda.

Esforçava-se sobre maneira para chegar até ela. Por outro lado, poderia ser um beco sem saída. Dali, apenas o mar encapelado e raivoso ou a turma que o perseguia. Escolha difícil para uma morte quase certa. Não teria chances contra aqueles brutamontes. Poderia ter se entregado à polícia. “Eu errei, mas não é para tanto. Por que tanto ódio? Por que tanto ódio?”. Reconheceu o latido, era o pitbull. Não estavam para brincadeira. Percebeu que soltaram o cão da coleira, então resolveu correr ainda mais e uma onda o salvou, segurando o animal por algum tempo.

Não havia escolha, penetraria no beco de concreto o quanto pudesse. Torcendo para que as ondas não o derrubassem no mar. Com um pouco de sorte, a turma desistiria. No dia seguinte, talvez fosse preso. Embora desconfiasse que estivessem à paisana, perseguindo seu rastro, num trabalhinho extra a lhe perseguir. Alcançou a estrutura e precisou de fôlego para invadi-la. A estrutura robusta tremia com a fúria do vento e as lambadas recebidas pelo mar irritadiço a chicotear algo estranho ao seu espaço majestoso. Colocado de forma atrevida ali. Às vezes não se importava; noutras, parecia açoitá-lo sem piedade como punição, embora não definitiva.

Os perseguidores se uniram de todos os lados na entrada da plataforma de pesca. Confabularam, atiçaram o cão, mas uma onda invadiu e o jogou ao mar. O fugitivo estava agarrado a uma pilastra e apenas se molhou, deixando-o gelado como um picolé de verão. O queixo não parava, as mãos tremulavam e os joelhos dobravam. Os homens resgataram o cão, conjecturaram um pouco e avançaram passo por passo, agarrando-se nas estruturas laterais.

O fugitivo foi mais para o fundo. Onde as ondas batiam com força e inundavam o pontilhão. Podia ver as armas nas mãos dos inquisidores babando por vingança. “Não era para tanto”. Pensou em negociar uma rendição. Porém, as palavras não saiam. Não estavam ali para rendê-lo, mas para executá-lo. A ressaca alcançou a rua à beira mar. Assustou o grupo. Dois deles desistiram e voltaram para a rua. Os demais não arredaram pé.

Reconheceu o gosto de lágrimas no meio da água salgada e da chuva que apertava. O corpo congelado não agüentaria muito tempo, com os pés descalços, uma calça jeans dobrada até as canelas e uma camiseta rasgada, tudo de segunda mão. A vida era cruel, por que ele não poderia ser também? Cruéis também eram seus perseguidores. Eram a chuva, o vento e o mar. “Sim. Sim. Eu errei. Mas não é para tanto. Não agora, dessa maneira!?”. O mar pareceu arrefecer, animando os caçadores. O fugitivo, encurralado, correu para o limite máximo. Agarrando-se no que podia. Eram três brutamontes armados ou a água turbulenta, fria e escura.

Passo a passo foram se chegando. Não haveria negociação. Ninguém subiria naquele lugar varrido pelo mar, com um vento intenso, àquela hora da noite, para negociar. Sabia que seu destino invariável era o mar. Subiu no parapeito, percebeu a maior de todas as ondas vindo, fechou os olhos e saltou com um ponto num mergulho definitivo, sumindo das vistas dos três. A onda pegou os valentões de surpresa e dois deles também caíram no mar, outro se machucou ao resvalar na água melequenta, batendo com a cabeça, abrindo um talho na testa que deixaria uma marca para sempre e um olho vazado nos pregos de seu tacape.

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Gilmar Peres

E-mail: pcgpop@hotmail.com

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