Gilmar Peres
O Léo adora a arte dos vinhos e todo o seu contexto. Há anos acompanha degustações, leituras e onde mais conseguir informações. É consumidor conhecido na cidade e com o tempo aprimorou seu gosto e conhecimento. Acabou se transformando em hobby também, a enofilia permite uma relação além dos seus efeitos fisiológicos. Estudando a bebida, pode-se conhecer a história, a cultura e até as pessoas de determinada região e tempo. Desde a mesopotâmia até os dias atuais. Dizem, inclusive, que os deuses se deliciavam com ela. Por que não? Afinal, possuíam poderes incomparáveis. Portanto, beber bons vinhos seria algo intrínseco e natural. Dionísio poderia nos responder caso aparecesse por essas bandas.
Era o responsável pela próxima degustação da confraria de muitos anos. Os vinhos também servem para isso: cultivar amigos ao longo do tempo. Mesmo porque abrir uma garrafa de vinho acompanhado é bem melhor do que bebê-la sozinho. Preparou-se por algumas semanas. Pesquisou, adquiriu as garrafas e planejou a apresentação. Seria uma degustação às cegas. Ou seja, os participantes não têm conhecimento de qual vinho se trata. Armazenou as garrafas adequadamente, no próprio dia enrolou folhas de jornal para ninguém reconhecer os rótulos. Retirou as identificações dos gargalos e foi empolgado para a apresentação.
Como o combinado naquela ocasião era para cada um levar o seu acompanhamento, não precisava pensar em comida para todos. Apenas para si e mais duas pessoas. Escolheu uma quiche. Encomendou com antecedência, buscou no horário combinado, pegou as duas companhias que também não sabiam o conteúdo da degustação e foram.
Ao chegarem, preparou tudo com esmero e dedicação. Léo sente prazer em servir as pessoas com um saboroso vinho. Para ele, são prazeres elementares e que cultivará enquanto a vida lhe permitir. Aos poucos, os confrades foram chegando. Sabiamente, quando reunidos, uma das regras é de não comentarem assuntos polêmicos: futebol, política e religião. Provavelmente, isso tenha mantido a regularidade e continuidade da confraria. Cada um queria saber mais sobre a degustação porque no convite, forneceram poucas informações. Embora degustação às cegas não fosse novidade para o grupo.
A mesa grande estava posta com pratos, talheres, cinco taças de vinho e uma de água para cada confrade. Tudo corretamente posicionado. Deveriam estar presentes aproximadamente doze pessoas. Léo convidou para tomarem seus lugares e informou as regras:
- Atenção pessoal, um minutinho, por favor. Hoje faremos uma degustação às cegas. A idéia é descobrirmos qual a cepa, a região dos vinhos e a faixa de preço pago em cada garrafa. Caso queiram discorrer um pouco mais, fiquem à vontade. No final, revelarei do que se tratam.
Os vinhos foram servidos por ele mesmo em doses pequenas e igualitárias. Para garantir que ninguém percebesse antecipadamente, não deixou chegarem perto das garrafas. Mesmo com elas encobertas por jornal. Havia recipientes propícios para esconder os rótulos no local. Preferiu do seu jeito, mesmo não sendo elegante, para garantir a curiosidade.
Os confrades se acomodaram a volta da tradicional mesa. Cada um ocupava quase sempre o mesmo espaço. Apenas o responsável pela degustação da noite acomodava-se à cabeceira. Léo abriu os trabalhos e todos o seguiram. A partir desse momento, era cada um por si. Tentando aproveitar ao máximo sua capacidade de degustar e perceber os vinhos. Buscavam por memória olfativa, identificação dos taninos e acidez equilibrada.
As taças eram postas contra superfícies brancas para identificar o corpo. Levadas ao nariz para perceberem o buquê de aromas. Giradas com rapidez por alguns segundos para abrir os aromas. Sorviam o líquido cuidadosamente. Os acompanhamentos em geral eram queijos e pães. Alguém levou uma torta de legumes e outras comidas de corpo médio. Minutos depois, as percepções começaram a ser colocadas.
- O vinho um é mais ácido que os demais – disse alguém.
Os vinhos seriam referidos como de um a cinco, da esquerda para a direita.
- Eu senti um toque de especiarias no três. O último me parece o menos encorpado. – disse outro.
- Vou arriscar: para mim o vinho quatro é Cabernet Sauvignon. – falou mais um.
E assim as pessoas foram indicando suas percepções com muita variedade de opiniões.
Não havia consensos. O vinho cinco foi o mais votado como o de menor qualidade pelo conjunto da obra. As cepas indicadas eram variadas também como Cabernet Sauvignon, Merlot, Tannat, Malbec, Cabernet Franc, entre outras. Cada um indicando os vinhos pela ordem de um a cinco. As safras não deveriam ser muito antigas e ninguém sabia os preços. Os mesmos que não gostaram do quinto vinho, reputavam-no como o mais barato e popular.
Léo se deliciava com as avaliações em expressões sóbrias, algumas bem técnicas. Verdadeiras teses foram defendidas, analisando teor alcoólico, textura, final prolongado e uma infinidade de aromas despertados pelas propriedades organolépticas. No final, desnudou as garrafas estampando um sorriso zombeteiro.
- Bem minha gente, esses eram os vinhos. Todos da mesma marca, da mesma cepa, Marselan, safra 2015, da serra gaúcha.
Os confrades esperavam alguma brincadeira do apresentador. Só não contavam com essa. Alguém lembrou que o armazenamento, o desenvolvimento do vinho dentro de cada garrafa, por ser um líquido vivo, e até as taças onde foram servidos, podem influir no resultado final. Daí a diferença. Enfim, era a prova de que as amizades duradouras também evoluem com o tempo, assim como os melhores e mais caros vinhos finos. Foi uma degustação que entrou para a história da confraria.
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